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Consultas por 'mímica' e receitas com desenhos: profissionais da saúde enfrentam barreiras da língua e cultura ao atender crianças e famílias migrantes no PR

Profissionais da saúde enfrentam barreiras para atender crianças migrantes Profissionais da saúde que atuam em Unidades de Saúde e hospitais do Paraná têm...

Consultas por 'mímica' e receitas com desenhos: profissionais da saúde enfrentam barreiras da língua e cultura ao atender crianças e famílias migrantes no PR
Consultas por 'mímica' e receitas com desenhos: profissionais da saúde enfrentam barreiras da língua e cultura ao atender crianças e famílias migrantes no PR (Foto: Reprodução)

Profissionais da saúde enfrentam barreiras para atender crianças migrantes Profissionais da saúde que atuam em Unidades de Saúde e hospitais do Paraná têm desenvolvido novas estratégias para enfrentar as barreiras linguísticas e culturais no atendimento de crianças e famílias migrantes. Não existem números oficiais de quantos migrantes e refugiados elegeram Curitiba como lar. Porém, segundo a prefeitura da capital, somente em 2024 foram quase 65 mil migrantes atendidos pelas unidades municipais de saúde. Entre eles estão venezuelanos, cubanos, haitianos, colombianos e sírios. ✅ Siga o canal do g1 PR no WhatsApp A Unidade de Saúde Vila Leão, no bairro Novo Mundo, é responsável por parte desses pacientes. Uma delas é Yoana Pérez Gonzalez, de 19 anos, que chegou de Cuba nas últimas semanas da gravidez. Sem falar português e com a necessidade de fazer todo o pré-natal em apenas alguns dias, Yoana encontrou profissionais dispostos a ajudá-la a entender cada informação importante sobre o parto e o estado de saúde do bebê. Entre as profissionais que a atenderam está a enfermeira Natália Santos Lopes, que usou o Google Tradutor para facilitar a comunicação com Yoana. "Atender migrantes aqui na unidade do Vila Leão tem sido um desafio muito grande, principalmente pela comunicação. Porém, a gente tem utilizado ferramentas de tradução. Também a linguagem corporal, gestos. A gente tenta facilitar essa comunicação com eles dessa forma", detalha a enfermeira. Yoana chegou ao Brasil nas últimas semanas da gravidez Maycon Hoffmann/RPC Na experiência que acumulou atendendo migrantes, Natália percebeu que, muitas vezes, eles não se sentem confortáveis em fazer perguntas. Outras vezes, por constrangimento, eles afirmam ter entendido as orientações, mesmo quando não entenderam. A enfermeira passou a reforçar o atendimento como um ambiente seguro, para garantir que o paciente estrangeiro não saia da consulta com dúvidas. "Eu, como profissional, me coloco no lugar deles. Trazer esse lado mais humano para a consulta. Trazer esse lado de empatia, mostrar que a gente está disponível para eles, que eles podem contar com a gente, que eles não estão sozinhos aqui", afirma a enfermeira. ▶️ Este texto faz parte da série "Infâncias em Travessia". Com foco na primeira infância e nos impactos das políticas públicas sobre famílias migrantes, os textos discutem e mapeiam os caminhos físicos, emocionais e sociais que crianças migrantes e refugiadas percorrem na chegada ao Paraná. Acesse aqui todos os textos da série. Tabelas de orientação Hospital de Curitiba usa tabelas de orientação para migrantes e crianças Maycon Hoffmann/RPC No Hospital Pequeno Príncipe, a farmacêutica Laiane Oliveira desenvolveu uma tabela personalizada que ajuda o paciente a relacionar cada medicamento com o horário em que deve ser ingerido. A iniciativa foi pensada para facilitar a rotina de pacientes transplantados, mas logo passou a beneficiar outros grupos, em especial, migrantes e crianças. Na tabela, os estrangeiros podem relacionar o nome do medicamento com a caixa dele. Além disso, há a tradução dos horários e quantidades para o idioma de cada paciente, e um campo que indica para quê serve cada um dos remédios. "É um olhar muito de cuidado, de falar: 'Será que o paciente entendeu? Será que é isso mesmo? Ele está compreendendo?'. Às vezes ele vai entender, mas é preciso compreender e replicar em casa sozinho", afirma a farmacêutica. No caso de crianças, a receita tem a foto de um personagem infantil, escolhido pelo próprio paciente. "Isso é importante para a gente porque, dentre toda a terapia medicamentosa, a gente vai ter a adesão do paciente. Porque a gente individualizou, a gente conseguiu trazer o paciente para dentro do cuidado, trouxe algo que ele gosta." No caso de pacientes transplantados, por exemplo, a medicação é fundamental para que o corpo não rejeite o órgão ou tecido recebido. Nobeline passou por tratamento no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba Hospital Pequeno Príncipe Nobeline Herve, de 10 anos, é filha de haitianos e escolheu os personagens do filme Divertidamente para ilustrar as orientações dos medicamentos que teve que tomar após passar por um transplante de medula óssea. "Eu estou me sentindo muito melhor. Foi muito boa a ideia da tabelinha. Foi bem especial. O hospital nos acolheu e foi muito bom. Tiveram muita paciência, me atenderam muito bem", diz a menina. A partir da proposta de Laiane, a também farmacêutica Lívia Santiago de Paula aprofundou a ideia e desenvolveu um quadro de comunicação não-verbal visual para facilitar o entendimento do paciente. No quadro, o paciente pode relacionar qual o nome do medicamento, com o formato e cor do comprimido e a função no tratamento. "Eu ficava pensando: 'Como que eu posso fazer com que eles consigam ver?' Então, através dessas ferramentas mais visuais também será possível garantir a adesão [ao tratamento], garantir com que eles entendam para quê serve cada um dos medicamentos ", detalha Lívia. Quadro indica o nome do medicamento, formato do comprimido e a função dele no tratamento Maycon Hoffmann/RPC Desafios Segundo os profissionais de saúde ouvidos pelo g1, os desafios no atendimento a migrantes e refugiados não param no idioma. Outra dificuldade está na consulta ao histórico deles, já que muitos chegam ao Brasil sem documentações. Em outros casos, nos países de onde os migrantes vêm, a vacinação não é universal e habitual, dando início a um processo de convencimento para que aceitem a imunização. Apesar dos esforços individuais de alguns profissionais de saúde, que recorrem a aplicativos de tradução, gestos e receitas ilustradas para se comunicar com migrantes, essas práticas ainda não fazem parte de uma política pública estruturada. Atualmente, não há uma integração ou treinamento universal garantido para que os trabalhadores da linha de frente estejam aptos a atender essa população de forma adequada. A enfermeira Natália usa o Google Tradutor como ferramenta para se comunicar com a paciente que não fala português Maycon Hoffmann/RPC A Cáritas da Arquidiocese de Curitiba atua como ponte entre o poder público e os migrantes, facilitando o acesso a direitos e serviços essenciais, como detalha Maria Fernanda Pedroso, coordenadora da instituição. Segundo ela, frequentemente a instituição recebe relatos e precisa intervir em situações nas quais migrantes tiveram dificuldades no acesso a direitos, como encaminhamentos para serviços de saúde. "Às vezes, falta a conscientização daqueles que estão na ponta. Em questão de governo, tanto a nível estadual e municipal, eles já conhecem essa realidade e sabem que isso é uma preocupação. Mas quem está na ponta prestando o atendimento às vezes não tem essa conscientização", aponta Maria Fernanda. A coordenadora defende que a capacitação do atendimento a migrantes é necessária para garantir o direito à saúde pública, previsto pela legislação brasileira. "Não é uma questão de um serviço exclusivo para essa população, mas uma questão de que eles não são diferentes dos brasileiros. Eles merecem o mesmo respeito, a mesma atenção que o brasileiro. E muitas vezes têm uma dificuldade de expressão muito maior do que qualquer brasileiro". Márcia Ponce, Secretária Regional da Cáritas no Paraná, destaca que a reivindicação de políticas públicas eficientes para migrantes beneficia a sociedade como um todo. "Quando a gente está tratando do tema da migração, a gente não está falando de privilégios para a população migrante. A gente está falando de inclusão, de acolhimento. E quando a gente trata de uma política inclusiva e acolhedora, os beneficiados dessas políticas são todos de forma igual. Toda e qualquer melhoria que se pensa em uma política pública também vão atender as mulheres brasileiras que também passam por isso. Não é só a mulher migrante", exemplifica. Atendimento 360º Javier e a família se consultam em uma Unidade de Saúde em Curitiba Maycon Hoffmann/RPC Javier Alejandro Serrano Rodriguez tem 9 anos e veio de Cuba. Ele chegou ao Brasil junto com o pai, a mãe, e o irmão mais novo. Diagnosticado com autismo e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), chegou em terras paranaenses sem medicação e começou a apresentar dificuldades na escola. A partir disso, passou a fazer o acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e na Unidade de Saúde Vitória Régia, na Cidade Industrial de Curitiba. A família toda se consulta na unidade e a mãe, Karina Rodriguez Hidalgo, destaca o atendimento humanizado que recebem. "Em geral, nos sentimos acolhidos aqui no Brasil. Praticamente não nos sentimos migrantes, nos sentimos em casa", afirma Karina. A médica Simone Carneiro Coppola faz o acompanhamento da família na Unidade de Saúde. Para ela, atender o migrante significa também considerar o contexto de onde ele veio. "Não tem como separar o social, o dia a dia deles, a história deles. Isso ajuda no tratamento da doença, na prevenção das doenças. O bem-estar vai bem além do físico aqui, para a gente poder entender a história deles [...] Não tem como só a mãe vir se consultar e a gente não estar falando dos filhos, porque isso entra na vida dela também. Isso entra na questão multidisciplinar. É um trabalho em rede", afirma Coppola. Clefaude Estimable, psicólogo e especialista em mediação cultural, defende que é possível partir de dois princípios para o atendimento em saúde para migrantes e refugiados: receber e acolher. "A política nacional recebe as pessoas, recebe no país, recebe no escritório. Acolher é outra pegada. Acolher significa reconhecer o contexto sócio-histórico dessas pessoas, reconhecer o sofrimento, reconhecer a trajetória dessas pessoas, o desejo dessas pessoas", afirma. É também essa lógica que norteia o trabalho da enfermeira Natália Santos Lopes, que atende Yoana Pérez Gonzalez, a jovem mãe cubana mencionada no início da reportagem. Para ela, o aprendizado no atendimento é mútuo. "Foi um desafio muito grande, mas também um aprendizado. Assim como eles aprendem com a gente, a gente também aprende com eles", afirma. Yoana na primeira consulta do filho, com a enfermeira Natália Maycon Hofffmann/RPC Cerca de uma semana após o filho de Yoana nascer, ele passou pela primeira consulta, fundamental para orientação da mãe e avaliação inicial do bebê. Durante o atendimento, Natália teve a oportunidade de aprender algumas novas palavras em espanhol. Para a mãe de primeira viagem, a consulta e a conversa com a enfermeira serviram para tirar dúvidas e acalmar algumas preocupações maternas. "Vou dizer a verdade: foi um alívio, porque um profissional ia examiná-lo e ia saber se está tudo bem ou não. Como eu não tenho experiência, já queria que chegasse o dia da consulta. Me disseram que está tudo bem, que ele está se desenvolvendo bem, que não há nenhum problema", compartilha Yoana. *Com colaboração de Matheus Karam e Maria Pohler, assistentes de produtos digitais do g1 Paraná. Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do Global Center for Journalism and Trauma. VÍDEOS: Mais assistidos do g1 Paraná Leia mais notícias no g1 Paraná.

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